A TI MINHAS RECORDAÇÕES
Atualizado: 23 de jul. de 2020
Luana de Freitas dos Santos - 2M2
Estava arrumando as malas empoeiradas, enfurnadas no alto do guarda roupas, quando me deparo com uma pequena caixinha amarela com trepadeiras floridas desenhadas a mão, bem ao canto do móvel. O sentimento de encontrar esse pequeno túmulo de recordações foi inexplicável, um mix de felicidade e ansiedade, por poder rever o que teria eu escrito anos atrás. Senti-me desenterrando uma cápsula do tempo, tive uma imensa vontade de descobrir o conteúdo, mesmo sendo eu quem o depositara.
Segundos após sair daquele nostálgico transe, sentei-me no chão de pernas cruzadas, apoiando as costas na cama, pus a caixinha em minha frente com todo zelo possível. Ao abrir-lá pude ver dezenas de folhas de caderno amarronzadas que exalavam um perfume de flor envelhecida, uma máscara de tecido preto e um pequeno recipiente de álcool em gel com um papel colado na tampa que dizia “cuide-se, ok? Eu amo você!”. O sorriso emocionado surgiu quase que de imediato em meu rosto… que tempos!
Puxei o primeiro papel que continha uma data estampada na borda: “25/03/2020”.
Acho que começa aqui, falei em baixo tom, como se para mim mesma ouvir. No alto da folha o título estampado era ‘Feriado Esticado” e um pequeno parágrafo em baixo que dizia: “Há uma semana me liberaram do estágio, as aulas foram suspensas e parece que eu vou ter que ficar em casa por sei lá quanto tempo. Já assisti um monte de vídeo no youtube pra entender o que está acontecendo e que virus é esse, mas a maioria dos vídeos são tão pessimistas que nem sei. Estou escrevendo isso porque não tem nada pra fazer e meu celular está carregando. Tomara que isso acabe logo, já fiquei um mês em casa durante as férias e nem deu pra matar saudade das meninas lá na escola, então é isso, querido diário, ou sei lá o que você seja”.
No papel de baixo a mesma formatação, mas uma outra data na borda: “06/04/2020”, o título era “Não tenho ideia de título” e o pequeno texto que se seguia era basicamente eu reclamando do mundo por ele estar sendo cruel comigo, uma adolescente de 16 anos... clássico!
Em seguida mostro a ti as cartas que considero mais essenciais para a narrativa.
“27/04/2020 DEUS NOS ACUDA
Acabou de passar na televisão que o número de casos passou de 3 milhões no mundo. Eu estou fazendo a minha parte, não estou saindo nem pra ir à farmácia, mas da minha janela vejo as pessoas andando como se não houvesse nada, sem máscara, como se não estivéssemos em uma pandemia. Sinceramente eu não me considero uma pessoa muito influenciável, mas vendo toda essa gente nem aí, eu fico me perguntando se precisa disso tudo mesmo. Além disso, nosso ( infelizmente) presidente diz que não se pode fechar o comércio, sempre critica o isolamento social e o fechamento de serviços devido aos impactos para a economia, como se as vidas fossem nada, como ter empatia com esse ser???”
“15/05/2020 DESORDEM NO REGRESSO
Eu não aguento mais a televisão, minha saúde mental já foi pro saco, estou considerando a ideia de que é melhor entregar o Brasil pros indígenas de novo, sei lá, estou bem não. O Brasil passou a China e entrou para o top 10 dos países com mais infecções no mundo e, inversamente proporcional a isso, a taxa de isolamento vai indo... grande dia! A gente está sem ministro da saúde... novamente. Na verdade, a gente está é no titanic e não tem botes suficiente para o povo, dois dos botes foram preenchidos com cloroquina. Eu vou ficar com os velhinhos da cama, mas a um metro e meio de distância, porque né?! Precauções. Desculpa o texto mórbido, estão acabando as minhas esperanças. Minha vó me deu uma caixa amarela aqui, vou pôr as cartas dentro e enterrar no quintal, se eu tiver ânimo e conseguir levantar da cama”
“24/06/2020 O CIRCO DA NEGAÇÃO
Pensei nesse título antes do texto e nem sei se terá nexo. Hoje estou meio inspirada pra escrever, estava assistindo alguns vídeos de autoajuda, que na verdade nao me ajudaram, mas na verdade me ajudaram sim, porque depois de assistir eu pensei ‘o que que é isso minha filha? vc precisa disso?’ Até que melhorei depois do meu ‘autopuxãodeorelha’. Então, descobri que pessoas são movidas a interesses, aprendi a aceitar a escolha que eles fizeram, querendo ou não (e eu não quero) ele também é o meu presidente. Estou parando de negar as coisas sabe? Deixa ele lá no palácio falando as asneiras dele, deixa aquele povo fazer aglomeração, deixa fazerem protestos, aliás o Brasil só tem 52.788 MORTES E 1.152.066 CASOS CONFIRMADOS, e tome gripezinha. Já passei da minha fase de revolta com esse governo, eu sinceramente estou começando a achar que é tudo planejado, porque eu nunca vi espetáculo tão engraçado!”
“10/072020 ME INDICA UMA SÉRIE AI
Então, meu caro futuro leitor, escrevo a ti com palavras deveras garbosas, como algum renomado escritor de vossa passada literatura escrevera. Redijo a ti sem nenhum motivo aparente, e na mais pura ironia do presente a ti digo mais, sequer li um clássico! Ainda estamos em isolamento, não sei quando acaba, MAS tive notícias de uma tal vacina, estou nem criando expectativas, porque né? É a vida! Hoje reli aquela primeira carta que eu escrevi, me deu vontade de chorar de verdade. Consegui lembrar de como minhas prioridades eram outras, por exemplo: minha maior preocupação era apresentar um trabalho de física na escola, ou entregar uma redação de português, hoje eu só quero continuar viva até o final do ano. Falando em ano, já passou a metade, está tudo meio confuso, mais eu estou seguindo firme nos estudos, eles vão mudar minha vida! Minha saúde mental? Vendo o mundo como está, seria impossível está pior. Estou tentando levar tudo comicamente, não sei se vai ser eu que vou rir por último, então que agora estes sejam meus melhores sorrisos. O coronavírus já me levou alguns conhecidos; as vidas negras importam MUITO; machistas, fascistas, racistas não passarão. Terminei Anne with an E e minha vida perdeu o sentido. Estou desenvolvendo meu senso crítico; a gente está trocando mais de Ministro da saúde do que de roupa, e ainda assim, por incrível que seja, tenho esperança. Acredito que passamos por coisas necessárias para nossa evolução moral e espiritual, sei também que quando estamos na pior é muito difícil ver esse lado, mas eu estou me esforçando pra mudar esse meu pensamento… eu juro! Hoje eu me empolguei um pouco mais escrevendo, porque meu celular também está descarregado. A você ‘Luana do futuro’ que está lendo, se tiver a oportunidade de voltar no passado e mudar alguma coisa, fica por aí mesmo, que aqui eu dou conta. Vou te dar um álcool gel de presente, eu me importo com você sabia? Vou te dar uma mascará também, essa não me serve mais.”
Ao final das cartas eu já estava aos prantos, essa pandemia me machucou tão fundo que ainda não cicatrizou.
Coloquei tudo de volta na caixinha, deixei-a em cima da cama e terminei de arrumar as malas. Fui até a gaveta da cozinha e peguei uma fita de cetim vermelha. Hoje minha neta faz dezesseis e eu achei o presente perfeito pra minha mini escritora favorita. Elas chegaram às 7h aqui em casa, dei-lhe um abraço apertado e desejei felicitações. De cima da escrivaninha, puxei uma pequena caixinha amarela com trepadeiras floridas, envolta com uma fita vermelha de cetim, em cima dela havia um bilhete escrito “cuide-se, ok? Eu amo você! Com amor da vó Lu”, disse ainda para ela continuar estudando, pois o estudo mudou minha vida.
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